segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Nudez sazonal

E fez-se outono em dois dias.
Dois dias não te olhei
E hoje estavas nu de cores e calor.
Em dois dias desapareceu-te tudo
E eu dormia.

Foi um fechar de olhos do meu cansaço.
A névoa lá fora disse-me para ficar.
No entretanto, abraçou-te e despiu-te.
Deixou-te nesse abandono sazonal
E eu partilho a passiva culpa.

O tempo há-de vestir-te de novo
E se ainda me quiseres,
Talvez possamos ter finalmente
Uma primavera ou verão.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Rochedo é o meu nome do meio.
De espuma é a minha carcaça
E todos o ventos um juizo.
Assobiam e desfazem
Essas fortalezas de nada
E da dura matéria
Resta o nome que me mancha.

Barco de papel,
Um prazo de validade.
Será o barco apenas barco,
Quando na água que o desvanece?

Assim se conta a parábola
Do desaparecer.
A cantiga da moral
Em rochedo de espuma.

Serão nossos somente os dias honestos,
Leais, mais que fiéis.
Só esses poderão ser rasgados do calendário.
Apenas esse papel figurará
Nos desígnios do concretizado.
E levado ao mar, far-se-á barco.

Finalmente ler-se-á na proa,
O derradeiro nome:
"Despedida".

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Anonimato

Anonimato

A existência é a confusão personificada.
Que coisa é?
Que implica, isso de existir?

Estou neste manto de clandestinidade,
toda a gente se sabe existente
mas ninguém se conhece.
Somos animais.

As inexplicabilidades do correr das coisas,
são como um silêncio colectivo
de compatibilidade limitada.

Existo porque nasci?
Ou existo porque sou relevante para alguém?
ou para alguma coisa?

Poucos percebem toda a ambiguidade
de estar e ser...
São subtilezas sem catalogação,

Estás e és mas não existes e apagas-te.
Essa é a sina dos intensos e borratados.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Porquês despropositados




O amor dispensa todas as coisas.
Dispensa até a existência.
Ignora por completo o discernimento
Enfia no mesmo saco o desejo e a razão,
Como se fossem eternos azeite e água,
sem nem sequer querer saber.

Voltarão eventualmente
a ser dois mas não sem se batalharem
e serem engolidos pelo tempo.

Não sei sequer o que é bom ou mau,
se te quero e te busco em todas as cores do dia,
ou só nos objectos que se mexem...
não consigo imaginar-te sem movimento.
Não podes parar, não podes deixar de existir.
Pelo menos não em mim.

Vais sempre tão desfeita de mim...
porque voltas?

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O sol veio à hora marcada,
secou os teus olhos molhados como sempre,
sentou-se ao teu lado
e paciente aguentou o teu despertar.

Ao abrires o primeiro olho,
a leveza era-te estranha,
esticaste a mão no instintivo gesto
de procurar os óculos na cómoda
e todos os movimentos eram fáceis.

Fáceis demais, talvez. Estranhos.
Finalmente através das grandes lentes,
mesmo com as dedadas e o pó
que a preguiça te impediu de limpar,
vês a tua tristeza o fundo do quarto no tapete.

Ontem a tua cama foi pequena demais para as duas.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Fossem mais leves as asas que te levaram,
Fosse de ouro o teu silêncio,
Fossem brancas as memórias,
Fosse tudo a alegoria perfeita do que afinal não é,
E mais leve seria o meu luto.

Só seguindo é possível livrar-me deste escuro peso.

Eu sei, a lição teórica todos aprendemos já outrora
De lápis e caderno!
Ninguém me ensinou, todavia,
Este limbo sem gravidade e sem ti.

É como a primeira vez que me senti sem pé no mar
Mas até isso alguém me ensinou!
Não há poesia na ideia de que já não existes,
Todos os meus esforços são inglórios.

Espero apenas que de cada vez que estas palavras
E outras que tal se soltem dos meus dedos,
Levem com elas um pouco do escuro que descrevem.
Que levem os momentos
Em que ainda não te encontro de sorriso nos lábios.

domingo, 2 de março de 2014

Sim, eu vou ser aquela mulher.
Vou ser a amargura dela e as suas lágrimas.
Não me venham consolar!
Consolos são lamentos humilhados.

Vou ser a amargura daquela mulher
E escondê-la por baixo do tapete.
Arrumar a casa e escolher as flores mais bonitas.
Vou fazer da minha casa a antítese do que escondo.

Vou ser essa mulher e vou tocar-lhe.
Vou deixar-me sofrer em vez de fugir.
Vou estar aqui mesmo e deixar-me roer... ruir!
Que os pedaços de carne que me apodrecem não sejam nem notados!

Vou deixar que nasça nova carne no lugar da que se foi.
E se não houver mais carne,
Se for inútil a minha espera, pois que desapareça...
Que desvaneça eu e o que me existe.
Que seja pó ou ar, mas que não se deixe existir.

Vou ser essa amargura, essa dor de desistente.
Abandonar-me às emoções que não são eu mas me desenham.
Talvez abraçando essa mulher,
Faça sentido este choro que é meu.
Talvez tocando-lhe seja mais real
A destrução que me tenho negado.