quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Gosto de te pedir desculpa

gosto de te pedir desculpa.

tenho coisas cá dentro

que nem sabes, 

mas sempre

de perdão no bolso.


gosto da certeza de que voltas,

gosto de fugir

e não ver os teus olhos sem norte,

de dor que doer-me-ia

se ficasse para ver.


gosto que já saibas,

que comigo as desilusões são sem fim.

e só de saberes,

já te desenganas.


sei que levas um peso,

de uma bagagem vazia de mim.

um leveza que te esmaga 

porque, ao contrário de ti,

eu não volto.


mas dizer que gosto,

desencanta-me de mim.

não devia gostar tanto

da certeza de ti.


A finitude chega 

para ti e para mim

e cada dia é menos um dia.

Essa amiga eu já a conheço,

mas não vou saber sabê-la de ti.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Razão tinha o Eugénio

Estou a escrever cedo demais.
Por certo amanhã
Já se mudaram os ventos.

Mas esta noite quero adivinhar!
Quero convencer-me de fora para dentro.

Há dias em que se me foge o medo de falar
E todos os músculos se sossegam.
Sou a reminiscência que esqueci de lembrar
E a prudência parece uma piada de criança.

Sou toda coragem, despida no escuro,
Toda eloquência de vontade e luz.
E sinto entre os dedos a veludez da vida,
Que quase parece dia, depois de tanta noite.

Por mim, não se coroará a morte de alegria,
Razão tinha o Eugénio.

Pelo menos, hoje!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Sou vento

Sou vento.
Ar que foge ou não existe.
Sobre mim, nuvens que tudo podem.

O meu peito vai desabando com o peso,
O meu queixo não conhece posição erguida.
Tentei querer essa altivez,
Tentei esse acreditar de tudo,
Mas sou só ar.

As gentes não me tocam nem me vêem,
Não me sabem prever as mudanças de direção.
Não me podem cravar os dedos e pedir que fique,
Mas a certeza das más notícias que sou
São o maior eufemismo
Destas noites de barulho que me confundem.

O vento não gosta de silêncio.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Já chegaste

Amigo, tu que já chegaste,
Tenho tantas perguntas.

Como é aí do outro lado da porta?
Há fome e lume também?
Saudade e raiva?

Como cheira o céu?
Sempre achei que o cheiro das nuvens
Fosse baço e desse tosse.
Conta-me o que já viste.

Ou estás nalgum limbo calmo e sem cor?
Consegues chorar?
É salgado o sabor das lágrimas como aqui?

Tens por fim paz e sorrisos
Ou só vontade de voltar ou não ter ido?

Estás livre? Tens memórias?
Sabe bem pensar em nós? 
Ou não pensas sequer?

Preferia que não pensasses
Nem te lembrasses.
Gostava de te ver perdido em risos.
A melhor cura.

És uma lembrança de carne e osso ainda.
Basta um de nós a lembrar.
Sofrimento pela metade.
Aperto aqui nas minhas entranhas
Mas do teu lado dois pulmões livres para rir.

Se nos voltarmos a ver,
Espero que sejas velhinho
E não me conheças.
Quero ver a cara de alguém que continuou a ser.
Quero que a minha cara não te diga nada
Mas que nos tornemos família outra vez, só porque sim.
Porque foi a sério.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Já não sei falar de amor

Eu já não sei falar de amor.
Já não tenho ideias.
Nem memórias.

Eu já não sei falar de afecto.
Não me lembro do toque.
Nem do cheiro.

Não sei mais abraçar.
Esqueci-me do som de um sussurro.

A minha pele continua fria,
Como quando era tocada
Por amantes antigos.

Não sei sequer se é saudade.
Parece uma falta de juízo 
Que já não me serve.

Tenho sonhos e sonhos.
Escrever sobre matérias profundas.
Mas já não sei falar de amor.
Ternura já não pode ser tema.

Terei de encontrar outras
Coisas para sentir.
Escrever sobre nada 
E sentir tudo.

Hei-de contar histórias,
E deixar a ternura e o amor
Para quem as ouvir e puder sentir.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Não sejas uma memória

Não sejas uma memória.
Ainda não.

Fica mais uns dias e deixa-me convencer-te.
Somos todos defeito,
todos partidos.
Poeira hoje,
Fénix depois da noite.

Não te quero lembrar,
não te quero imaginar,
não quero o silêncio e o nada.
Quero o toque no ombro
e o piscar de olho.
Quero o guacamole mal esmagado.
Quero a dança desajeitada.
E quero rir-me contigo.

Para ficares era preciso mais do que o mundo,
mas talvez não houvesse mais mundo.
Que mundos somos nós então,
os que te pensam e agora te imaginam?

Não te sei imaginar.
Não sei os teus olhos, só o seu piscar.
Não sei a tua voz, só as tuas frases simples.
Não sei o teu nome,
só o meu na tua boca.

Não chega.
O meu egoísmo é quase pior que o teu.

domingo, 11 de novembro de 2018

Prisioneiro culpado e inocente

Era um olho e era um choro.
Esse suor dos olhos,
Outra fatiga, menos física.

Era um estômago e um vómito.
Esse insaciar de sentidos,
Outra náusea, uma mente mareada.

Era pele arrepiada e era um peito despido.
Esse frio do depois,
Outro vazio sem calor.

É uma lista dos meus fracassos
E é uma promessa que não vou cumprir,
Como todas as outras
Que flutuam sobre a minha cabeça.
Alma que arrasta aço pela perna
Como prisioneiro culpado.

Ou talvez inocente.